Quando as estrelas dormem na cinza

- O dia chegou ao fim, silêncio a noite desceu... - sentada no colchão pousado no chão, Aurora canta a melodia de sempre aos seus dois filhos para os embalar e adormecer.
Adormecem, e depois de um beijo em cada um, Aurora corre a cortina do quarto partilhado e limpa a cara a um lenço de papel amarrotado e  já cheio de lágrimas.
Vai à janela, onde o Jaime já estava. 
Os dois olham, sem palavras, o escuro da noite.
Faz dias que a chuva cai envergonhada, no cinzento do chão, no preto das árvores.
É mais uma noite sem estrelas, com cheiro a cinza.

Aurora lembra que faz uma semana - corria tudo tão bem, o normal! - entre abraços, deixou os meninos na escola, voltou a casa, fez o almoço para levar para 2º turno da fábrica.
A mesma fábrica onde Jaime já estava desde a madrugada. 
No final do dia Jaime entrou no carro, entre abraços, apanhou os meninos na escola, para os levar à piscina, era dia de natação. - É importante que os ganapos aprendam a nadar, nunca se sabe... - dizia Jaime. Jaime fez o jantar, enquanto as duas cadelas brincavam no pátio com os meninos, aproveitando o final do dia de um Verão fora de tempo.

Agora
já não carro.
já não há fábrica.
já não há casa.

O domingo passado levou-lhes, num terrível incêndio, a normalidade dos dias e das noites.
O domingo passado trouxe-lhes, num terrível incêndio, um monstro sem nome, mas com línguas gigantes de fogo, que entre o sufoco do barulho, calor e fumo do outro mundo, engoliu árvores, ruas e pessoas. Dá para descrever. O inferno.

Agora faz-se o luto, enterra-se a rotina.

Eles estão juntos, conseguiram salvar as cadelas. 
- Todos. É o que interessa. Tivemos sorte. 
Amigos e familiares de outras aldeias ajudam no que podem, emprestam a casa onde dormem, emprestam a paciência, emprestam o único elixir que cura estas feridas, mas deixa cicatrizes - o Tempo - muitos deles já passaram pelo mesmo.

- Vai ser difícil esquecer. Impossível. - Acreditam Aurora e Jaime enquanto olham pela janela o escuro da noite.

Os meninos acordam a chamar o pai, Jaime corre a cortina, senta-se no colchão pousado no chão, cantando para os embalar e adormecer. 
O dia chegou ao fim, silêncio a noite desceu, boa noite, paz em Deus...

















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